14.1.08

Abraços alternativos

William-Adolphe Bouguereau (1825-1905) - Two Sisters (1901) - Wikipedia
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Abraços alternativos

Por Paulo Heuser


Toninho e Tininha enriqueceram. Não desperdiçaram a maior oportunidade das suas vidas. Pularam no vagão dos passageiros da fortuna enquanto o trem passava. Passando para linguagem um pouco menos figurada, eles fizeram um ótimo negócio.

Tudo começou quando preparavam um trabalho de Emotividade Psicomercadológica III. Eles perceberam o mercado da solidão. Observavam o hábito de mandar um abraço, enraizado nos relacionamentos que ficam entre os negócios e a paixão. Pessoas de negócios mandam abraços, via e-mails ou telefone, quando já conhecem o interlocutor. Mandam abraços, no plural, pois um só poderia parecer íntimo demais. Curiosamente, essas pessoas não costumam se abraçar quando se encontram pessoalmente. Exceções são os vendedores e os políticos, que, no fundo, são a mesma coisa. Uns vendem coisas reais, outros não. Abraçando-se, enquanto preparavam o relatório, perceberam também que o abraço é uma forma universal de transmitir algo. Os amantes transmitem tudo aquilo que quase todo mundo sabe o que é através de um abraço, um demorado abraço. Toninho e Tininha estavam abraçados desde as sete da matina, do dia anterior.

Inimigos de palanque, quando pegos em público, trocam abraços molengas que, mesmo assim, transmitem coisas impublicáveis. Velhos amigos trocam abraços que falam por si só. Mães e pais abraçam sua prole como se abraçassem o mundo, transmitindo segurança e afeto. Tininha foi mais a fundo na coisa, e descobriu que ninguém sabe exatamente como se transmite emoções através do abraço. O fato é que conseguimos. Pesquisando, Tininha observou que havia pessoas que necessitavam desesperadamente de um abraço. Ela própria já enfrentara essa situação, quando Toninho passara o fim de semana visitando os pais. Foram 36 horas de extrema solidão, que levaram Tininha ao apartamento do Luis. Ela foi pega pela extrema crise de abstinência de abraços. Ainda bem que o Luis estava lá.

O clique propriamente dito veio quando Toninho fechou o flipe do celular, após falar com o primo Jorge. – Uma abração, Jorge! – Foram suas últimas palavras. Não, ele não morreu, apenas encerrou a ligação. Tininha ficou ali, muda, olhando, ora para o celular, ora para a mão de Toninho que a mantinha no abraço. Toninho pensou que Tininha havia perdido o juízo, quando ela pediu que ele vestisse roupa branca e que buscasse um saco de carvão. Ela abiu o saco, passou as mãos no pó de carvão e veio na direção do imaculado e apavorado Toninho, que apenas gritava: - O que é isso, ficou louca? - Ele não conseguiu evitar que Tininha o abraçasse com aquelas mãos imundas de carvão. Quando ela finalmente parou de abraçá-lo, Toninho lembrava um cão dálmata. Havia vestido o casaco de peles da Cruela. Tininha ordenou, sem mais explicações, que ele tirasse roupa, que foi levada ao apartamento do Luis, notório abraçador substituto e nerd de plantão do laboratório de Física da universidade. Luis ouviu atentamente as explicações da Tininha, enquanto tentava abraçá-la. Meio a contragosto, desistiu dos abraços e pôs mãos à obra. Levou a Tia Eulália, costureira, para o laboratório e, após duas semanas ininterruptas de trabalho, saíram de lá com um protótipo do que seria o maior sucesso de vendas desde o maldito tamagoshi. Encurtando a história, até por uma questão de espaço, eles inventaram uma roupa de abraços. O usuário número um simulava um abraço, vestindo aquela roupa cheia de sensores, e discava para o celular do usuário dois. Este recebia um aviso de abraço entrante e conectava o celular com a sua roupa de abraços. A roupa copiava o abraço original, inclusive simulando a temperatura corporal, mediante pagamento de uma pequena taxa adicional.

Apesar de a roupa não transmitir emoções, foi um estouro de vendas. Todo mundo queria uma daquelas roupas, mesmo aqueles que passavam todo o dia grudados, em eterno abraço. Havia gosto de traição, no uso da roupa. Luis passou a ligar para a Tininha, mandando abraços, sem que Toninho soubesse, é claro. Toninho teve a idéia de lançar um tele-serviço de abraços. O usuário ligava para uma central, que, por sua vez, ligava de volta, transmitindo um abraço aleatoriamente escolhido entre as chamadas. Logo pipocaram as roupas falsas na 25 de Março. O segundo lote até que fez sucesso. O primeiro apresentou um sério problema. O fornecedor chinês inadvertidamente simulou um abraço de animal, em vez do abraço humano. Um abraço de urso.

As imitações se tornaram cada vez melhores, algumas até incluindo novas funcionalidades, como um gemido suave. Em efeito melissinha, as vendas começaram a cair. O fato que determinou o fim da roupa de abraços foi o lançamento de um livro escrito por um cientista esquimó, que defendia o abraço direto, interpessoal e presencial. Ou seja, o velho e bom amasso.


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