O Sincero
O Sincero
Por Paulo Heuser
Ontem cruzei com o Sincero. Não é seu nome, apenas um apelido conquistado ainda nos tempos do colégio. Cruzei é modo de dizer, desviei solenemente, fugindo pelo meio de uma loja. Como o próprio apelido diz, Sincero é exatamente isto: sincero. O que é uma virtude humana, na crença popular, torna-se uma desgraça, no caso dele. É que o Sincero exagera, não tem filtro. Pensou, diz. Na lata. O pessoal foge dele, como o Diabo foge da Cruz.
Por Paulo Heuser
Ontem cruzei com o Sincero. Não é seu nome, apenas um apelido conquistado ainda nos tempos do colégio. Cruzei é modo de dizer, desviei solenemente, fugindo pelo meio de uma loja. Como o próprio apelido diz, Sincero é exatamente isto: sincero. O que é uma virtude humana, na crença popular, torna-se uma desgraça, no caso dele. É que o Sincero exagera, não tem filtro. Pensou, diz. Na lata. O pessoal foge dele, como o Diabo foge da Cruz.
Sincero não é apenas sincero, é sincero e barulhento. Diz tudo em alta voz, sem perdão. Entrou naquela fase da sinceridade, na infância, e nunca a superou. Continua até hoje. Ninguém mais o convida para almoçar ou jantar. Os comentários dele são inevitáveis:
- Credo, esse arroz está meio insosso! – ou:
- Carninha durinha, hein? É coxão duro?
- O vinho está bom para sagu!
Namoro nem pensar. Nenhuma o agüenta. Os comentários vêm como cascata:
- Que bafo! Engoliu um urubu? – ou ainda:
- Me apresenta teu costureiro, quero lhe dar o prêmio de mau gosto do ano!
O que deixava todo mundo mais melindrado é o fato dele sorrir, enquanto esculhambava com tudo e com todos. No fundo, seja lá onde for este fundo, Sincero deveria ser um bom sujeito. Pena que ninguém conseguia percebê-lo assim. Presentes ninguém lhe dava, era mico na certa:
- Coisa mixuruca e de mau gosto! – comentário suave do Sincero.
A irmã o levou a um psiquiatra, na tentativa de ajudá-lo no relacionamento com as outras pessoas, seriamente abalado pela excessiva sinceridade. Tempos depois, ela me contou o que se passou por lá.
Mal entraram na sala do doutor e o Sincero comentou:
- Cheira mal aqui, não? Tem cachorro molhado no tapete?
Antes que o doutor conseguisse responder à pergunta, veio outra:
- Nossa, que mão suada. Está nervoso?
Seguiu-se outra, logo ao sentar na poltrona:
- Cara, não podia comprar algo mais confortável, cobrando o que cobra?
O doutor anotava alguma coisa enquanto ouvia outra:
- Esse truque de fingir que anota algo, é demais! Faz parecer que o negócio é sério.
A irmã do Sincero achou que seriam expulsos do consultório. Mas o doutor continuava impassível, como se nada o abalasse. Estava preparado para enfrentar esses casos, profissionalmente. Após uma pequena pausa, e antes que o Sincero usasse novamente toda sua sinceridade, lhe perguntou:
- Você tem noção de que pode ofender as pessoas sendo tão sincero?
- Isso no seu nariz é uma berruga? Não juntou grana para mandar arrancar isso daí? – rebateu Sincero.
- Você não está fugindo da minha pergunta? – insistiu o doutor.
- Você é que está fugindo das respostas! – retrucou o Sincero.
- Eu não vejo por que mentir. Sou sincero, franco e autêntico. Quem é meu amigo sabe. – continuou.
- Quantos amigos assim você tem?
- Por enquanto nenhum, mas isto há de mudar...
- Por quê?
- Ora, porque alguém vai querer um amigo sincero, franco e autêntico.
- A sua sinceridade não poderá atrapalhar?
- Não, quem deseja um amigo autêntico, quer a verdade, sempre.
- Você machuca as pessoas, com seus comentários. Deveria ser mais empático...
- A empatia anda junto com a mentira. É válida apenas quando nos colocamos no lugar de alguém perfeito.
- Quantas vezes, até hoje, você se colocou no lugar de outrem?
- Nunca, nunca achei alguém perfeito, que fosse digno da minha empatia. Não tenho culpa se os outros estão cheios de defeitos...
- Não seria válido esquecer os defeitos dos outros, ou pelo menos fingir que esquece?
- Isto seria hipocrisia pura!
O doutor teve mais dois encontros com Sincero. No segundo, descobriu ter orelhas de abano. No terceiro, que seu nariz era estranho e torto. E já havia formado um quadro:
- Você não nota, mas é portador de um transtorno da personalidade - a Síndrome de Schweinefleisch-Hildegardstrümpfen. – que o leva à excessiva sinceridade.
Sincero ficou calado, apenas olhando para o doutor, que, intrigado, lhe perguntou:
- O que houve? Agora não fala mais? Não vai dizer que meu cabelo se parece com bombril albino?
- Não doutor, eu pensei já ter dito isso ontem. Hoje, pensava no que levaria alguém a pronunciar Schweinefleisch-Hildegardstrümpfen tão mal...
E-mail: prheuser@gmail.com
1 Comments:
Achei bem interessante o texto. Um estilo que mistura realidade e crítica de uma forma super bem humorada. Acho legal este estilo de "blogar", leve e ao mesmo tempo com seriedade. Escrevi recentemente um texto cômico que também envolvia diálogos.
http://blogoeublogastu.blogspot.com/2007/03/histria-afetiva-de-jozinho.html
Já escrevi postagens melhores, mas essa eu guardo no coração justamente por este lado hilário da vida.
Um abraço
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