Os Heróis da 14
Os Heróis da 14
Chegando ao aeroporto, olho com desconfiança para um setor do embarque, onde uma placa indica: Volumes de Tamanho Incomum. Como não me enquadro exatamente nos padrões de tamanho, nem verticalmente, nem horizontalmente, tenho o receio de que me mandem fazer o despacho, o meu, naquele portão. Faço cara de morto, expiro todo o ar dos pulmões e dobro os joelhos, para parecer mais baixo e menos largo. Noto uma certa hesitação, por parte da atendente, lançando um olhar para aquele setor, após me olhar de cima a baixo – elas sempre nos olham como se estivéssemos fazendo algo errado. Receio também que me tirem a franquia, de peso da bagagem, por já tê-la excedido, sem considerar as malas. Vencido o desafio do check-in, vou aliviado para o embarque. Mostro o cartão de embarque à tripulante, na porta da aeronave. O sorriso metálico dela transforma-se numa expressão de profunda comiseração, quando lê o número da poltrona: 14E. Este número, multiplicado por um fator cabalístico qualquer, sempre dá 666 como resultado. Quem projetou aquilo deveria estar de porre ou se vingando de alguém, que ali viajaria. Um pigmeu não se sentiria confortável naquele espaço liliputeano. Vencidas todas barreiras para chegar à 14E, sentado finalmente! Este é o momento de começar a reza para que ninguém sente ao me lado ou, pelo menos, meus vizinhos sejam pigmeus subnutridos. Os privilegiados ocupantes das alguma-coisa-A, ou L, somente precisam rezar para que o vôo seja tranqüilo e para que a barra de cereais não seja a de sabor goiaba. Quando já vou relaxar, e começar a acreditar que viajar de avião não é tão ruim assim, descubro que meu vizinho à esquerda é um famoso jogador de basquete, o João Pequeno. Trocamos um olhar de desespero - onde acomodaremos as pernas? As poltronas rangem ameaçadoramente sob a pressão dos joelhos contra os encostos. O que mais pode dar errado? A 14F é ocupada pelo dublê do Frei Tuck, aquele do Robin Hood, lembra? Agora estou bem, João Pequeno à esquerda e o nosso clone do bondoso Frei Tuck à direita. Este, imediatamente avisa que vai orar pelas nossas almas e, especialmente, pelos nossos corpos. Para melhorar o humor dos penitentes da 14, o comandante avisa que o vôo sofrerá um pequeno atraso, de 45 minutos, devido ao congestionamento no Aeroporto Internacional de Guaranhuns. Esta é a má notícia. A boa nova é a de que vamos aguardar, confortavelmente sentados, na aeronave. Frei Tuck comenta que é impressionante como ainda se pode falar, mesmo com o corpo comprimido daquela forma. João Pequeno teme ficar fora do próximo jogo, por lesões nos joelhos. Penso que, em algum momento no futuro, este martírio vai terminar, o que me enche de esperança, algo como tirar os tênis novos, de lona, após a maratona. Decolagem! - voamos afinal em direção ao alívio. Se a pressão nos joelhos fosse estática, daria para agüentar, mas com as cinco crianças sentadas, nas 15, brincando de cavalinho com os encostos das 14, a coisa se torna dinâmica, latejante. O que ser menisco? A pena que sinto dos pais das crianças da 15 me alivia um pouco a dor. O vôo anterior, Tóquio-Guaranhuns, com escalas em Minsk, Auckland, Casablanca, Oslo e Antofogasta atrasou 11 horas, deixando as crianças um pouco impacientes e irritadas. Surpresa! – no lugar do tablete de cereais, uma refeição quente! Galinha, guarnecida com arroz petit-pois. Frei Tuck recusa e pede uma dose tripla de uísque. Diz que serve como anestésico. Não há uísque a bordo. Retornando à refeição, o primeiro desafio é retirar a embalagem, que cobre os pratos, sem mover os braços lateralmente. João Pequeno descobre uma técnica, deixando os braços cruzados, no meio dos antebraços, com as palmas das mãos viradas para dentro. Com algum esforço, é possível. Agora é só comer. Qualquer distração para a dor é válida. Mas, como comer? Sem mover os cotovelos, a mão não alcança a boca. Novamente João Pequeno mata a charada. Basta deixar o braço direito - se for destro - cruzado sobre o esquerdo e, colocada a comida no garfo, virar a mão 180 graus para trás, na direção do corpo, realizando, a seguir, um movimento de ascensão em direção à boca, sincronizando o movimento vertical do antebraço com o da mão. Tudo ajudado pelo minúsculo garfo de plástico pegando arroz, bem solto, e as ervilhas. Que saudades da Idade Média, não havia aviões nem talheres! Experiente, Frei Tuck dá a seguinte dica: misturar o queijinho com o arroz, para dar liga. A tripulação começa a nos olhar de forma estranha, pois parece que ensaiamos uma coreografia tipo Macarena. Bandejas recolhidas, hora do pipi. Pensando bem, uma dor a mais, da bexiga, não soma nada. A dor nos joelhos abafa qualquer outra. Tentei fazer pipi, no toalete do avião, faz alguns anos. É mais ou menos como fazer pipi dentro de um armário, só que com a parede do fundo curva. Para ver onde se está mirando (com r!), só com um espelho mesmo, pois o corpo fica curvado para trás, acompanhando a curvatura da fuselagem, e a testa bate no teto. Para o meu próprio bem, e para o bem do avião, nunca mais tentei. O pessoal de limpeza se recorda até hoje daquele vôo. Quando parece que teremos de deixar nossos corpos, pela insuportável compressão, o milagroso aviso de apertar cintos – como apertar mais alguma coisa? – soa como música em nossos ouvidos. Sinto o solavanco do trem de pouso nos rins. Pousados, motores parados, desembarque iniciado e tentamos nos levantar para a vida. Nada, perdemos o controle sobre os músculos das pernas, entorpecidas. Estamos entalados. A aeromoça, desconfiada, avisa que chegamos ao nosso destino. João Pequeno explica, constrangido, a situação. De dentro da cabine vazia, os Heróis da 14 assistem à chegada das ambulâncias e dos carros de bombeiros. Prometemos nos reunir uma vez por ano, para comemorar o resgate, a bordo de um navio.
Paulo Roberto Heuser
Chegando ao aeroporto, olho com desconfiança para um setor do embarque, onde uma placa indica: Volumes de Tamanho Incomum. Como não me enquadro exatamente nos padrões de tamanho, nem verticalmente, nem horizontalmente, tenho o receio de que me mandem fazer o despacho, o meu, naquele portão. Faço cara de morto, expiro todo o ar dos pulmões e dobro os joelhos, para parecer mais baixo e menos largo. Noto uma certa hesitação, por parte da atendente, lançando um olhar para aquele setor, após me olhar de cima a baixo – elas sempre nos olham como se estivéssemos fazendo algo errado. Receio também que me tirem a franquia, de peso da bagagem, por já tê-la excedido, sem considerar as malas. Vencido o desafio do check-in, vou aliviado para o embarque. Mostro o cartão de embarque à tripulante, na porta da aeronave. O sorriso metálico dela transforma-se numa expressão de profunda comiseração, quando lê o número da poltrona: 14E. Este número, multiplicado por um fator cabalístico qualquer, sempre dá 666 como resultado. Quem projetou aquilo deveria estar de porre ou se vingando de alguém, que ali viajaria. Um pigmeu não se sentiria confortável naquele espaço liliputeano. Vencidas todas barreiras para chegar à 14E, sentado finalmente! Este é o momento de começar a reza para que ninguém sente ao me lado ou, pelo menos, meus vizinhos sejam pigmeus subnutridos. Os privilegiados ocupantes das alguma-coisa-A, ou L, somente precisam rezar para que o vôo seja tranqüilo e para que a barra de cereais não seja a de sabor goiaba. Quando já vou relaxar, e começar a acreditar que viajar de avião não é tão ruim assim, descubro que meu vizinho à esquerda é um famoso jogador de basquete, o João Pequeno. Trocamos um olhar de desespero - onde acomodaremos as pernas? As poltronas rangem ameaçadoramente sob a pressão dos joelhos contra os encostos. O que mais pode dar errado? A 14F é ocupada pelo dublê do Frei Tuck, aquele do Robin Hood, lembra? Agora estou bem, João Pequeno à esquerda e o nosso clone do bondoso Frei Tuck à direita. Este, imediatamente avisa que vai orar pelas nossas almas e, especialmente, pelos nossos corpos. Para melhorar o humor dos penitentes da 14, o comandante avisa que o vôo sofrerá um pequeno atraso, de 45 minutos, devido ao congestionamento no Aeroporto Internacional de Guaranhuns. Esta é a má notícia. A boa nova é a de que vamos aguardar, confortavelmente sentados, na aeronave. Frei Tuck comenta que é impressionante como ainda se pode falar, mesmo com o corpo comprimido daquela forma. João Pequeno teme ficar fora do próximo jogo, por lesões nos joelhos. Penso que, em algum momento no futuro, este martírio vai terminar, o que me enche de esperança, algo como tirar os tênis novos, de lona, após a maratona. Decolagem! - voamos afinal em direção ao alívio. Se a pressão nos joelhos fosse estática, daria para agüentar, mas com as cinco crianças sentadas, nas 15, brincando de cavalinho com os encostos das 14, a coisa se torna dinâmica, latejante. O que ser menisco? A pena que sinto dos pais das crianças da 15 me alivia um pouco a dor. O vôo anterior, Tóquio-Guaranhuns, com escalas em Minsk, Auckland, Casablanca, Oslo e Antofogasta atrasou 11 horas, deixando as crianças um pouco impacientes e irritadas. Surpresa! – no lugar do tablete de cereais, uma refeição quente! Galinha, guarnecida com arroz petit-pois. Frei Tuck recusa e pede uma dose tripla de uísque. Diz que serve como anestésico. Não há uísque a bordo. Retornando à refeição, o primeiro desafio é retirar a embalagem, que cobre os pratos, sem mover os braços lateralmente. João Pequeno descobre uma técnica, deixando os braços cruzados, no meio dos antebraços, com as palmas das mãos viradas para dentro. Com algum esforço, é possível. Agora é só comer. Qualquer distração para a dor é válida. Mas, como comer? Sem mover os cotovelos, a mão não alcança a boca. Novamente João Pequeno mata a charada. Basta deixar o braço direito - se for destro - cruzado sobre o esquerdo e, colocada a comida no garfo, virar a mão 180 graus para trás, na direção do corpo, realizando, a seguir, um movimento de ascensão em direção à boca, sincronizando o movimento vertical do antebraço com o da mão. Tudo ajudado pelo minúsculo garfo de plástico pegando arroz, bem solto, e as ervilhas. Que saudades da Idade Média, não havia aviões nem talheres! Experiente, Frei Tuck dá a seguinte dica: misturar o queijinho com o arroz, para dar liga. A tripulação começa a nos olhar de forma estranha, pois parece que ensaiamos uma coreografia tipo Macarena. Bandejas recolhidas, hora do pipi. Pensando bem, uma dor a mais, da bexiga, não soma nada. A dor nos joelhos abafa qualquer outra. Tentei fazer pipi, no toalete do avião, faz alguns anos. É mais ou menos como fazer pipi dentro de um armário, só que com a parede do fundo curva. Para ver onde se está mirando (com r!), só com um espelho mesmo, pois o corpo fica curvado para trás, acompanhando a curvatura da fuselagem, e a testa bate no teto. Para o meu próprio bem, e para o bem do avião, nunca mais tentei. O pessoal de limpeza se recorda até hoje daquele vôo. Quando parece que teremos de deixar nossos corpos, pela insuportável compressão, o milagroso aviso de apertar cintos – como apertar mais alguma coisa? – soa como música em nossos ouvidos. Sinto o solavanco do trem de pouso nos rins. Pousados, motores parados, desembarque iniciado e tentamos nos levantar para a vida. Nada, perdemos o controle sobre os músculos das pernas, entorpecidas. Estamos entalados. A aeromoça, desconfiada, avisa que chegamos ao nosso destino. João Pequeno explica, constrangido, a situação. De dentro da cabine vazia, os Heróis da 14 assistem à chegada das ambulâncias e dos carros de bombeiros. Prometemos nos reunir uma vez por ano, para comemorar o resgate, a bordo de um navio.
Paulo Roberto Heuser
6 Comments:
Parabens. Sua aventura foi magnifica...digna de contar aos netos em reuniões de familia. Meu problema com poltronas é diferente....tenho pernas curtas....e sempre fica a sensação (real ou imaginaria...) que faltam alguns centimetros e isso acaba ddando uma grande insegurança se a poltrona estiver regulada inclinada para dormir por exemplo...mas enfim....com o banheiro do avião me dou bem....lentamente .... e até consegui certa vez....um sexo...inesquecivel...mas isso já é outra historia.
Bom poder estar aqui.
Beijinhos...mil deles...em todo vc
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