16.5.06

Duas Perdas

Duas Perdas

Perdas são sensações muito pessoais. O que é uma perda para mim pode ser um alívio para outros. Perdas alheias podem nos atingir, mesmo quando não são perdas para nós. A perda do controle, mesmo que momentânea, sobre determinados músculos, causa desconforto àqueles que nos cercam, especialmente em locais pouco ventilados. Sofri duas perdas recentes. Custei a perceber o que havia perdido. Há perdas de caráter eminentemente determinístico, como a do papel higiênico. Terminou, você nota na hora. Outras, mais sutis, não são percebidas de pronto - há a sensação de perda, mas não identificamos logo de quê. Abrindo o jornal, na semana passada, percebi o que eu havia perdido. Falta o ronco de dois motores radiais Pratt & Whitney, de 14 cilindros e 1200 HP, acompanhando a silhueta do velho Dakota – apelido do DC-3. Operado junto ao Aeroclube do Rio Grande do Sul, em vôos de passeio, o avião foi vendido para um fazendeiro de São Paulo. O fato pode ter passado despercebido em meio à crise da Varig e de outras crises, mais terrenas, que assolam o País. A Fênix morreu aqui e renasceu em outro local. Foi uma perda para aqueles que, de alguma forma, estiveram ou estão envolvidos com a aviação, ou gostam do assunto. Impossível explicá-la aos outros.
Minha outra perda, compartilhada apenas com quem anda pela Rua da Praia, tem também, de certa forma, algo a ver com vôos. Os vôos alçados pelo Índio Chiquinha, por sobre aquele caixote cuidadosamente colocado na sua arena de espetáculos. Para os que o conhecem, qualquer descrição é desnecessária. Por outro lado, como explicá-lo para quem nunca o viu? Antes de tentar descrevê-lo, e o seu inusitado espetáculo, cabe traçar um perpendicular - paralelo é impossível, pois não há - com outras performances mambembes que ali ocorrem. O local – Andradas defronte a Praça da Alfândega – assiste às performances de índios (estes não Chiquinhas), contando histórias e estórias, sobre aventuras na selva, aproveitando para vender artigos diversos, como elixires extraídos de cobras que resolvem cálculo renal, impotência sexual e calvície, tudo ao mesmo tempo. Como não há tráfego de veículos, ficamos livres dos caloteiros, aqueles sujeitos que giram calotas nos semáforos. Aparecem também as já batidas estátuas vivas pintadas de prata e os eternos espancadores-de-gato-no-saco, estes ainda reunindo grande público. O que esses espetáculos têm em comum? O público. Quando se faz parte da paisagem, deixa-se de olhá-la. Quem já viu um espancamento de gato no saco, viu todos. Só pára para ver quem nunca viu ou quem não tem absolutamente nada para fazer. Já no caso do Índio Chiquinha, o inusitado faz um público realmente eclético. A impensável cena de um sujeito trajando algo que lembra um macacão tip-top, que não cresceu na mesma razão do usuário, padrão camuflado, em tons de salmão, marias-chiquinhas no cabelo, coturnos pretos e maquiagem de guerreiro, faz com que qualquer um pare para ver. Desde os fãs dos espancadores-de-gato-no-saco até sisudos executivos, todos param para assistir às performances. Não só os trajes, tudo ali é estranhamente cult. A trilha sonora, para o acompanhamento, aparenta ter sido extraída de algum disco de Glenn Miller. Seria digna de uma eletrola hi-fi (pronto, o corretor ortográfico não sabe o que é uma eletrola). Hi-fi não é um drink a base de vodka. Voltando ao acompanhamento, do quê? Da dança, ora. A performance do Índio Chiquinha inclui uma dança peculiar, onde trota e salta como se estivesse percorrendo uma cancha reta com obstáculos, um caixote ou banquinho de madeira. Os saltos e rodopios são sincronizados com o estalido das castanholas que usa nas mãos. O som destas, combinado com Glenn Miller, cria um quadro surrealista de uma cacofonia divertida. Algo como a Marcha Radetsky, de J. Strauss, merecia estar ali. Antes do espetáculo a arena é cuidadosamente medida e delimitada. O espetáculo só inicia quando as contribuições espontâneas atingem o piso de 5 reais. Disso o Índio Chiquinha não abre mão. Há todo um custo de produção. Soube que o Chiquinha anda em turnê nacional, devendo retornar ao sul, em data ainda não determinada. Já foi alvo de entrevistas em grandes jornais. Relatei no presente, sabedor de que, ao contrário do DC-3, ele voltará. O que os dois têm em comum? Ambos beiram os 60 e nos divertem com seus vôos.

Paulo Roberto Heuser

6 Comments:

At quarta-feira, 17 maio, 2006, Anonymous Anônimo said...

oi!
muito boa a crônica!
=]

 
At quarta-feira, 17 maio, 2006, Anonymous Anônimo said...

Olá Paulo,
Li as suas crônicas na Zero Hora. Parabéns e continue escrevendo assim.
Carlos Assis.

 
At quinta-feira, 18 maio, 2006, Blogger José Elesbán said...

Heuser, Muito boa crônica. Também lamento que o DC-3 tenha ido voar em outro lugar.

 
At terça-feira, 18 julho, 2006, Anonymous Anônimo said...

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»

 
At quinta-feira, 20 julho, 2006, Anonymous Anônimo said...

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At segunda-feira, 07 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

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