7.2.07

Na Defesa Das Instituições

Na Defesa das Instituições

Por Paulo Heuser

Hoje fui ao shopping, programa de fim de tarde para quem ficou na cidade. Na saída, uma surpresa: um pneu furado. A solução era a troca, coisa tão simples que nem pensei em chamar o socorro mecânico, apesar do calor senegalês e da sujeira brasileira. Trocar um pneu é simples, não é? Ainda me lembro do último que troquei. Foi lá em, vejamos, 1980? Deve ter sido, pois o carro era um reluzente Dodge Polara. Carros são carros, rodas são rodas, pneus são pneus, tudo igual, portanto. Ledo engano. Algum gênio da área de projetos da montadora teve a luminosa idéia de colocar o pneu sobressalente do lado de fora do carro, sob o porta-malas. Após tudo o que se lê, a respeito do furto desses pneus, ele ainda estaria lá? Uma rápida inspeção, sujando as calças, confirmou a presença dele. Menos mal, bastaria torcer para que ainda houvesse ar nele, após tanto tempo sem uso. Uma rápida consulta ao enigmático manual de instruções do veículo bastou para que eu percebesse que a procura do macaco e da chave de roda seria uma versão automobilística de Onde Está Wally?. Pensei até em comprar uma banana para atrair o macaco com sua chave. Estariam sobre o pneu? O manual trazia estranhos diagramas, em preto e branco, que indicavam que o macaco estaria no interior da parede do porta-malas. Como retirá-lo dali? Tateando na luz mortiça, encontrei coisas que pareciam presilhas. Girando-as, revelou-se o compartimento onde se escondia o símio, revelado à luz, pela primeira vez.

Encontrada a chave de roda, o resto foi fácil, ma non troppo! Bastou colocá-la num orifício que estava escondido por uma tampa, no fundo do porta-malas. E girar, girar, girar, até que... nada. O pneu continuava no mesmo lugar. Mais uma consulta ao manual, e mais sujeira no resto das calças e na camisa, para descobrir que havia uma trava manual, bastando se levantar o pneu e baixar a lingüeta, voltando a soltar o pneu, cuidando para... Simples, não? Dali surgiu o pneu mais sujo que alguém poderia imaginar. Trazia lembranças de idas à praia, das estradas de chão, das chuvas, do asfalto e de tudo o mais que passa sob um carro. Por que o gênio não projetou um compartimento fechado?

Pronto, já havia todos os recursos necessários para a execução do projeto. Bastava retirar a calota, que insistia em não sair, apesar do enorme esforço. Quando uma das filhas conseguiu parar de rir, me avisou que os parafusos da roda prendiam também a calota. Ponto para o engenheiro. Só que a filha continuou a rir, baixinho. Baixinho como o tal do macaco. Estava mais para um sagüi, ou macaco-anão. Encontrar o encaixe do carro para o acoplamento do símio foi outra novela. O manual mostrava setas apontando para locais imaginários. Acabei encontrando um lugar. Aí bastou girar, girar, ..., girar... Um macaco de precisão, com certeza, pois o carro somente subiu após 93 voltas. Para melhorar o processo, a chave de roda, que também é a alavanca do macaco, bate no chão, exigindo 186 meias-voltas. Depois, basta fazer aquilo que sempre se faz. E girar mais 186 meias-voltas, no sentido contrário, para baixar o carro. Enfrentei certa dificuldade para retornar o sagüi ao seu habitat. Ele se transformou num gorila, recusando-se a voltar ao lugar.

Com a aparência de um mineiro de carvão, em final de expediente duplo, deixei o shopping carregando o pneu ferido. Fui me socorrer do borracheiro que utilizei há 27 anos. Fechado. Como, fechado? Fazer o quê! Perguntando daqui e dali, cheguei à outra borracharia. A primeira impressão é péssima. Estava tudo limpo e não havia pilhas de pneus carecas por tudo. Um calendário mostrando a foto de um homem pelado piorou a impressão. Que diabos de borracharia seria aquela? Uma lavanderia de pneus?

O pior ainda estava por vir. Surgiu uma mulher limpa. A mulher do borracheiro, talvez. Ou seria a secretária? Quando ela agarrou o pneu, com uma luva, e o jogou dentro de um tanque cheio d’água, comecei a entender aquele misto de borracharia e lavanderia de pneus. Um homem pegaria o pneu, com as mãos nuas, e após tentar enchê-lo, sujando a si e a tudo ao redor, o colocaria no tanque, para verificar o local do vazamento de ar.

A mulher subverteu a ordem daquela centenária instituição. Uma borracharia limpa operada por uma borracheira, também limpa. Onde iremos parar? Mineiras de carvão em macacões brancos? Churrascarias de rodízio sem pingos na roupa? Alguém tem de defender as instituições!

E-mail: prheuser@gmail.com