21.2.07

A Vida e o Risco

A Vida e o Risco

Por Paulo Heuser

Risco pode ser apenas um traço, um segmento de reta. Quase nada podemos representar com apenas um traço. O horizonte na Holanda, talvez. Risco pode ser também o que define nossa vida. Estamos permanentemente arriscando alguma coisa. Ou deixando de arriscar, o que pode também representar um risco.

Uma ultrapassagem representa risco, no trânsito. Arriscamo-nos mais ou menos, conforme nosso arrojo, função da idade, em geral. Os jovens se arriscam mais. Vão aos limites no trânsito, quando não os ultrapassam. Correm os riscos de pagarem mico, bebendo demais. Podem também morrer, desta forma. Sofrem com o risco de levar um fora. Ou com o dilema de não levá-lo, se não tentarem uma abordagem.

Na casa da pretendida, nada dá certo, quando nos arriscamos muito. Pouco também. Nos arriscamos ao sentar naquele sofá de tecido sintético que emite sons fisiologicamente suspeitos, quando nos movemos. Nos arriscamos ao exarar nossa sincera opinião sobre a musicalidade da dupla Alpendre e Alcagüete, quando o candidato a sogro é o Alpendre em pessoa.

Apesar de tudo que é dito, nos arriscamos a comer aquelas deliciosas maioneses caseiras, feitas com os ovos maturados das galinhas do vizinho do cunhado do entregador de pizza. Não há como resistir ao produto caseiro. Na contra-mão da globalização, corremos o risco da revolução. Intestinal.

A vida é assim mesmo. Não há como fugir dos riscos. Ao atravessar a rua, ao tomar banho na banheira, ao fazer a barba, ao jogar na loteria, estamos sempre nos arriscando. Na proporção inversa da nossa idade. A aproximação do inevitável aumenta a cautela. Contudo, como em tudo, há exceções à regra. Pelo menos uma. Quem descobriu tal exceção foi o meu amigo Peter, ao apanhar o jornal, pela manhã.
O entregador, como de hábito, enfiara o jornal sob a porta do apartamento, parcialmente. Peter abaixou-se e puxou a ponta do jornal. Nada, não veio. Pior, o jornal reagiu com uma força de mesmo módulo, mesma direção e sentido contrário, num súbito e intenso rompante newtoniano. Animado, sabe-se lá pelo que, além da Terceira Lei de Newton – a Lei de Ação e Reação -, o matutino adquiriu vida. Quereria poupá-lo das intermináveis desgraças nele contidas? Certamente explodiu outro carro bomba na fila do pão em Bagdá. Morreram nove e um joão-de-barro na colisão de um Fiat 147 contra um poste. A eleição ainda não terminou, seja qual for. Chavez vai estatizar funerárias e fábricas de fraldas. O Presidente tomou banho de mar.

Peter não se deu por vencido. Puxou com força, dessa vez. Foi imitado pelo jornal, que quase o derrubou. Durante a luta, empatada até então, lhe ocorreu abrir a porta, para atacar o jornal por trás. Contava com o elemento surpresa. E esta foi enorme, ao abrir a porta, de supetão. Do outro lado do cabo-de-guerra, no qual o jornal se transformara, estava Dona Erfrydes, vizinha do 1401 – este não é o seu número verdadeiro. Tampouco é aquele o seu nome verdadeiro, evidentemente. Dona Erfrydes causava mais espanto pela aparência. Vestida com um chambre - daqueles acolchoados -, pantufas de dinossauro, rolos no cabelo e olhos esbugalhados, pela surpresa, ela apresentava um quadro assustador, personagem foragido de algum conto de Stephen King.

Refeitos do enfarto, estabelecida a propriedade sobre o jornal, cada um voltou para sua casa. E o jornal deixou de sumir. Dona Erfrydes passou dois meses sem cumprimentar Peter. Achei pouco, pois se arriscou muito. Prova de que o tamanho do mico também é inversamente proporcional à idade.

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