1.4.08

A caixa do Anibal


A caixa do Aníbal

Por Paulo Heuser


Quem me contou o caso foi um funcionário da Logística Metalógica, empresa de vanguarda no ramo da logística, como o próprio nome indica. A Metalógica foi uma das primeiras empresas a se autoquarteirizar, recebendo um prêmio de gestão pela iniciativa ousada, inovadora e exterminadora.

Os escritórios da Metalógica refletiam a quarteirização. As pilhas de papel, pastas, escaninhos, e todos aqueles materiais utilizados nos ambientes de escritório, deram lugar ao ambiente extremamente limpo, despojado e esteticamente espartano. A ausência de processos levou à eliminação de itens supérfluos, como aparelhos telefônicos fixos, porta-canetas e lixos para papéis. Restaram mesas de tampo branco, sem gavetas. Sobre elas, laptops brancos. O silêncio fez-se presente. O máximo de ruído no ambiente passou a ser o som do roçar das meias da Karol. Os colaboradores com tosse foram convidados a curá-la em casa. Tudo estaria perfeitamente funcional e ergonômico, se não fosse o Aníbal.

O ambiente estava no mais profundo silêncio permitido pelo roçar das meias da Karol, quando o Aníbal entrou pelo corredor, fazendo um terrível qüique-qüique enquanto pisava. Seus sapatos de couro ecológico produziam um insuportável ruído, apesar da forração de 28 milímetros. Aníbal entrou pela porta sul, fazendo qüique-qüique, carregando uma caixa de papelão de aproximadamente 50 x 40 x 30 centímetros de arestas. Tanto o Aníbal quanto a caixa destoavam completamente daquele ambiente moderno, sofisticado e, acima de tudo, silencioso. Os qüique-qüiques chamavam a atenção de todo mundo. Antes que o Aníbal conseguisse atravessar metade do corredor, o Albuquerque – CEO – o arrastou até a única sala de reuniões, onde não havia mesas nem cadeiras, pois tampouco havia reuniões. Albuquerque fechou a porta antes de falar em voz baixa:

- O que é isso, homem? Você quer perturbar toda a empresa?

- Não, doutor! Eu só quero achar...

- Chega de explicações! Troque esse sapato, imediatamente!

- Mas, doutor, eu não tenho outro!

Albuquerque retirou duas notas de 50 do bolso, entregando-as ao Aníbal.

- Vá, homem! Compre uns sapatos decentes, que não façam esse terrível qüique-qüique!

- É muita gentileza, doutor! – disse Aníbal, enquanto voltava à porta sul, carregando sua caixa, ao som dos qüique-qüiques, para desgosto de todos. Quando a porta finalmente se fechou, restou apenas o som do roçar das meias da Karol.

Na manhã seguinte, a porta sul abriu-se novamente, deixando passar um Aníbal carregando caixa que caminhava sem produzir som algum. Com os sapatos novos, pelo menos. O som do roçar das meias da Karol logo foi abafado pela respiração ofegante do Aníbal, que andava de um lado para outro, olhando sob as mesas sem gavetas. Albuquerque interceptou-o junto à terceira mesa, levando-o novamente à sala de reuniões.

- O que é isso, homem! Quer ensurdecer todo mundo com essa respiração?

- Desculpe, doutor! É que estou carregando essa caixa, e ela pesa...

Albuquerque ligou para a empresa contratada pela quarteirização e encomendou uma solução logística e silenciosa para o transporte da caixa do Aníbal, que ficou proibido de entrar pela porta sul enquanto a solução não chegasse. O pessoal virou fim de semana projetando e executando o Translogsil – Transporte Logístico Silencioso. Por fim, optaram por um modelo de carrinho que utilizava rodízios com rolamentos de titânio lubrificados com óleo de baço de baleia. O modelo que utilizava colchão de ar mostrou-se mais ruidoso do que o roçar das meias da Karol.

Aníbal entrou pela porta sul, todo feliz, pois o peso da caixa saíra do seu ombro. Com os sapatos de couro e o carrinho silencioso, ele andou em ziguezague entre as mesas, logo sendo interceptado novamente pelo Albuquerque. O pessoal estava se queixando do ruído produzido pelo ranger da dentadura do Aníbal. Albuquerque mandou Aníbal procurar o plano odontológico da empresa para darem um jeito naquilo.

Eis que o Aníbal adentrou novamente a porta sul, agora também de mobília nova, acompanhando sua inseparável caixa. Andou em ziguezague entre as mesas, como se procurasse alguma coisa. Quando passou ao lado da mesa da Karol, ela parou de roçar as pernas e lhe perguntou.

- Quem é o senhor, afinal?

- Oh, sou o Aníbal, da limpeza.

- Certo, e o que leva na caixa?

- Nada. Eu estou tentando encontrar um lixo para jogá-la fora.

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