11.3.08

Perpetua elettorale



Foto: Paulo Heuser



Perpetua elettorale

Por Paulo Heuser


Gianfranco Anarchico perambula pelo Alto da Bronze, no centro velho da cidade. Perambula, pois parece não ter destino definido. Simpático, lá pela casa dos 70, usa barba e cabelos longos grisalhos presos em forma de rabo de cavalo. As bermudas largas acentuam a magreza. Seus olhos vivos não deixam nada fugir, apesar das grossas lentes dos óculos de armação redonda. Ele não perde oportunidade para uma prosa com qualquer um que passe, conhecido ou não. Gian – como é conhecido por lá – nasceu na Toscana, onde seu pai militava em um movimento anarquista. Gian seguiu os passos do pai e foi convidado pelo PAIS – Partido Anarchista Independente Sectário – a vir ao Brasil para fundar uma célula local entre imigrantes daquele país. Apesar de o PAIS estar ligado a uma seita que cultuava Baco, não conseguiram mais adesões, senão aquelas dos dois membros já filiados. Mesmo após o fracasso, que até poderia ser encarado como sucesso, pois o partido manteve-se acéfalo e anárquico, Gian ficou por aqui e abriu uma gráfica de fundo de quintal para a fabricação de brindes.

Gian descia a Rua da Praia, na direção do Gasômetro, quando passou pelo Bar da Elvira, meio escondido entre os demais. Dois sujeitos que ocupavam a parte externa do bar - os dois degraus junto à soleira da porta - discutiam acaloradamente um dos assuntos do momento: se as obras públicas são eleitoreiras. Um rapaz com ares de estudante de Administração, com ênfase em Desestatização do Estado, afirmava que a Mãe do PAC – Ministra Dilma Rousseff – seria a candidata à sucessão do Presidente Lula, e que o plano seria puramente eleitoreiro. O outro, com ares de estudante de Governança, com ênfase no Terceiro Setor, rebatia afirmando que havia eleições demais, tornando qualquer coisa eleitoreira, pelo menos na aparência.

Duas pessoas formam um comitê. Três, um comício – pensou Gian, enquanto acomodava-se entre os dois, no segundo degrau.

- Ciao, ragazzi! Sabem que vocês dois têm razão! – disparou ele, sem convite. Essa sempre foi uma forma estratégica para entrar numa conversa sem ser expulso imediatamente. Contentava metade de cada lado. E continuou, antes que se refizessem da surpresa:

- Meu falecido pai, Armando, defendia a renovação constante do parlamento, coisa que meus conterrâneos parecem levar a sério. – referindo-se à nova queda do parlamento italiano. Antes que os rapazes pudessem esboçar qualquer reação, Dona Elvira já havia alcançado um copo de requeijão light – ainda com o rótulo – para que Gian se servisse de meio copo de cada cerveja. Novamente, não tomou partido. Tomou duas marcas de cerveja, misturadas, elogiando ambas.

- O poder não pode ser exercido por tanto tempo, mesmo que emanado do povo, pois não há nada mais corrupto que o povo acomodado. Já em 1959, defendíamos as eleições anuais, em agosto, mês que não tem Natal, Carnaval, Páscoa, Ano Novo ou qualquer outra data que venda brindes e ocupe o setor de serviços. Nem casamentos há em agosto. O que fazem os fotógrafos e os promotores de eventos? As eleições anuais movimentariam a economia e reduziriam essa sensação de obra eleitoreira. Logo poderíamos implantar as eleições em 12 turnos. Já imaginaram o salto de qualidade? O candidato assumiria representatividade nunca dantes vista.

Dona Elvira já ouvira essa história um sem número de vezes. Mudava apenas a introdução, conforme o papo que rolava no momento da chegada do Gian. Ele fez sinal para que ela trouxesse mais duas cervejas para os rapazes. Um deles tentou estabelecer um diálogo:

- Mas, isso vai virar bagunça...

- Bagunça não, mobilidade sociopolítica desprovida de hierarquia institucionalizada. Um novo e dinâmico sistema de perpetuação do poder do povo. Já pensávamos nele em 1959.

Gian serviu-se de mais meio copo de cada cerveja. Olhou para os dois incrédulos e involuntários fornecedores de cerveja blended e continuou o diálogo com ares de monólogo:

- Após o primeiro ano poderíamos transformar os turnos mensais em novas eleições. Então, seria fácil alcançarmos nosso objetivo final.

Nem os rapazes, nem Dona Elvira, figuradamente careca de tanto conhecê-lo, ousaram perguntar-lhe sobre esse objetivo final. O final soou como terminal. Mesmo assim, Gian respondeu a pergunta que não fora feita:

- Meu falecido pai, Armando, sonhava com a continua perpetua elettorale – eleição perpétua contínua.

Gian seguiu caminho, sem destino, sonhando com contínuos e eternos comícios, enquanto os dois rapazes permaneceram sentados em silêncio. Subitamente, perceberam que a distância entre suas idéias não era assim tão grande, afinal.

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1 Comments:

At terça-feira, 11 março, 2008, Anonymous Anônimo said...

ótima!!!

 

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