20.2.08

Os invisíveis


Foto: Wikipedia
Os Invisíveis

Por Paulo Heuser


Émile Durkheim (1858-1917) foi um sociólogo francês que explicou porque uns são mais iguais do que os outros. Considerado o pai da sociologia moderna, Durkheim estudou a estratificação social – as pessoas estão inseridas em determinadas camadas sociais, ou castas. Na Índia, por exemplo, as pessoas já nascem inseridas nas castas, a não ser que pertençam ao substrato da população composto pelos párias, ou intocáveis. A complexa e tão admirada cultura hinduísta acredita que os intocáveis vêm do esterco, portanto impedidos de tocar nos elementos das outras castas e nos alimentos, pelo temor de que vão contaminá-los. Até os escravos pertencem a uma das castas, na Índia. A hierarquia das castas sobrepõe-se à hierarquia das relações de trabalho. Aos intocáveis resta aquele tipo de atividade que ninguém pertencente às castas deseja fazer, como a limpeza das fossas sépticas. Os intocáveis literalmente mergulham nas fossas, como fizeram seus pais, os pais destes, e assim por diante.

Aqui há semelhanças. Nascemos inseridos em algum substrato social ao qual nossos pais pertencem. Porém, temos mobilidade entre as castas, ao contrário do que ocorre na Índia. Faz-se a ascensão social às outras castas através do acúmulo de capital ou da política. Um paria tupiniquim poderá tornar-se brâmane – a mais alta casta hinduísta – enriquecendo ou sendo eleito ou nomeado para algum cargo que lhe dê poder. Aqui há também o caminho inverso. A perda do capital ou do poder implicará a queda para algum substrato social inferior, proporcional ao tamanho da perda. Alguns perdem o cargo sem perderem o poder, o que é muito comum na política. Tornam-se consultores e mantêm o poder econômico.

Os sistemas sociais estratificados, como o nosso, adotam regras diferenciadas de punição aos infratores da lei. O brâmane tupiniquim que deixa cair o pote de caviar no bolso do Armani é um doente. Só pode ser, já que não necessita tomar posse daquilo sem realizar uma transação comercial – forma elegante brâmane tupiniquim de descrever um furto. O autor de tal ato falho – outra forma brâmane tupiniquim de descrever o furto – poderá ser condenado à sala de espera do amigo psicanalista, que lhe receitará um tratamento calcado na terapia ocupacional. Deverá participar de 12 jantares beneficentes. Sem apropriar-se de potes de caviar.

A história da manteiga furtada pelo pária é velha e não precisa ser repetida. A manteiga era de marca consumida pelos brâmanes tupiniquins e o sujeito foi em cana. Lá ficou, enquanto os criminosos mais perigosos saíam por abrandamentos de pena previstos em lei. De tudo isso veio a falácia de que apenas os párias vão em cana. Puro sofisma! Esqueceram-se do substrato que nem definido está, o dos invisíveis, espécie de subpárias. Estes estão fora do nosso sistema social, não nascem, não morrem, não votam e não são ibgeados. Pontos fora de qualquer curva estatística. Eles perambulam pelas ruas, mimetizados com as cores da sujeira. Inconscientemente, desviamo-nos deles. Quando dormem sob marquises, seus apartamentos preferidos, damos passo ao lado e seguimos nosso caminho. Paramos para socorrer os cães, pois eles pertencem à casta dos seus donos. Os invisíveis não têm cães, pois dali nem osso de sopa usado sai. O invisível somente se tornará visível se cometer um ato realmente pavoroso contra um elemento de casta. A Carta Magna não se aplica aos invisíveis. Se não lhes dão direitos, deveres não lhes poderão cobrar. Podem andar pelados pelo meio da rua, perpetrar pequenos delitos e conduzir toscos veículos de tração humana ou animal sem obedecerem qualquer norma de trânsito. Obedecem a tacitamente instituída lei da sobrevivência. Lei não enche barriga, dirão com razão.

Há quem tente mudar o estado em que essas coisas se encontram. Tenho visto com alguma freqüência um sujeito magro que cruza celeremente a praça, sempre com o telefone celular colado na orelha esquerda. O braço direito movimenta-se em ritmo de marcha, enquanto ele segue a passos largos, olhando para o infinito. Até ontem repetia sempre a mesma ladainha, num inglês com sotaque do Azerbaijão: - You are an idiot! I told you! You are an idiot!. Ele surgia por um lado da praça, trazendo um crescente “You are an idiot!” e saia pelo outro lado, deixando outro “You are an idiot!”, decrescente desta vez. - Lá vem o Yuarenidiot! - comentavam os engraxates. Até ontem, pois hoje o Yuarenidiot inovou, tanto na prosa como na idéia. Até no instrumento. Hoje veio armado de megafone, subiu no banco da praça e realizou o comício de um homem só. Defende a extensão do sistema de cotas às castas. Propõe a reserva de vagas nos presídios proporcionais ao número de habitantes nas castas sociais. Não apenas. Defende também a inclusão dos excluídos brâmanes tupiniquins e dos invisíveis, no sistema de cotas prisionais. E as prostitutas fazem coro com os engraxates, gritando: - Yuarenidiot!

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