Por detrás dos muros
Por detrás dos muros
Por Paulo Heuser
Muros dividem. Ou não, dirão os neodialéticos de plantão. Os muros protegeram contra os invasores de outros feudos. Eram muros altos, do alto dos quais jogavam óleo fervente, chumbo derretido, pedras e outras coisas para rechaçar os inimigos. Os muros dos anos de ouro – décadas de 50 e 60 – desceram ao metro, ou próximo disto. Eram mais decorativos do que funcionais. Impediam a fuga das galinhas e dos cachorros. Estabeleciam também um limite de propriedade. Para passarem dali, deveriam bater palmas e gritar o ó de casa. Por alguma razão qualquer, os muros que separavam dos terrenos lindeiros eram mais altos do que os muros que separavam o terreno da rua. Lembro-me de um muro que foi construído porque meu cachorro lingüiça adorava galinhas e esponjas para lavar copos, aquelas com cabo de madeira. O ditado que diz que a galinha do vizinho é mais gorda do que a nossa vale também para os cães lingüiças. Estendido para as esponjas. Restava sob a sebe um rastro de pedaços de espuma e penas.
Por Paulo Heuser
Muros dividem. Ou não, dirão os neodialéticos de plantão. Os muros protegeram contra os invasores de outros feudos. Eram muros altos, do alto dos quais jogavam óleo fervente, chumbo derretido, pedras e outras coisas para rechaçar os inimigos. Os muros dos anos de ouro – décadas de 50 e 60 – desceram ao metro, ou próximo disto. Eram mais decorativos do que funcionais. Impediam a fuga das galinhas e dos cachorros. Estabeleciam também um limite de propriedade. Para passarem dali, deveriam bater palmas e gritar o ó de casa. Por alguma razão qualquer, os muros que separavam dos terrenos lindeiros eram mais altos do que os muros que separavam o terreno da rua. Lembro-me de um muro que foi construído porque meu cachorro lingüiça adorava galinhas e esponjas para lavar copos, aquelas com cabo de madeira. O ditado que diz que a galinha do vizinho é mais gorda do que a nossa vale também para os cães lingüiças. Estendido para as esponjas. Restava sob a sebe um rastro de pedaços de espuma e penas.
Os muros daquela época fizeram parte de uma rede de comunicação de notícias: a WallNews. Tudo iniciava com a Frau Seifenfresser, moradora da esquina. Ela ouvia o rádio, o dia inteiro. O primeiro acorde do jingle do Repórter Esso tirava a Frau daquele transe de quem realiza tarefas repetitivas, como depenar a galinha para o almoço. Ela ouvia as notícias e corria para o muro do fundo, do lado direito. A campainha de muro dos fundos era bater palmas e gritar o ó vizinha. Estabelecida a comunicação, a nova era transmitida, aos gritos, por sobre o muro. A vizinha, por sua vez, difundia as notícias para os terrenos vizinhos. Estabelecia-se a Wallnews.
Contavam que na noite de seis de março de 1937 o rádio da Frau, então Freulein (senhorita) noticiou a queda do Dirigível Hindenburg, em Nova Jérsei. Seja quem fosse esse tal de Hindenburg, deveria ser alguém importante. Mesmo sob intensa chuva, Frau Seifenfresser postou-se ao lado do muro direito para propagar a nova. O ó vizinha mostrou-se infrutífero, pois ninguém atendia. A vizinha fora à casa da Dona Ata, para trocar figada por ovos. A Frau teve de dirigir-se ao muro do lado esquerdo, mesmo a contragosto. Não que ela não gostasse da Viúva Racketenbauer. O problema é que ela era meio surda, alterando o texto das notícias retransmitidas. Essa surdez provocara a instalação de um sino, ao lado do muro. A Frau puxava a corda e toda a quadra sabia que lá vinham novas.
- Caiu o Hindenburg, em Nova Jérsei! – gritou a Frau Seifenfresser.
A Viúva ouviu, digeriu a nova, e arrastou-se até o muro seguinte, batendo palmas e gritando outro ó vizinha. Já alertada pelo sino, Dona Frida estava do outro lado do muro, aguardando o ó vizinha da Viúva Racketenbauer. Para avisá-la que já ouvira a notícia, Dona Frida costumava jogar de volta pequenas frutas, como butiás ou jabuticabas. Pega no contra-pé, durante uma entressafra, ela apelou para a única fruta disponível: o abacate. A Viúva Racketenbauer ganhou óculos novos e alguns hematomas no rosto. E assim a notícia correu muros, até chegar na casa da esquina oposta. Lá, após ouvir atentamente, Dona Fliegenjägerin gritou para o marido:
- Um tal de Linden morreu, em Novo Hamburgo!
Nenhuma rede é perfeita. Sempre há a possibilidade de ocorrer algum ruído na linha, durante a propagação das notícias sobre os muros. Contudo, aqueles tempos se foram. Os descendentes da Dona Frida, da Viúva Racketenbauer, da Frau Seifenfresser e da Dona Fliegenjägerin trabalham em modernos escritórios, onde há telefones em todas as mesas e acesso a Internet. A notícia está por toda parte, tropeça-se nela, principalmente quando deixam algum cabo solto sobre o piso. Os cabos também já se tornaram coisas do passado, substituídos por todas essas tecnologias de acesso sem fio a Internet. Os viciados nessas coisas já podem levar seus laptops ao toalete!
Ana - neta da Frau Seifenfresser – trabalha num moderno ambiente desses. É uma viciada em notícias, como foi sua avó. Mesmo sem percebê-lo, Ana segue exatamente a rotina da sua ancestral. Quando salta alguma nova notícia, na janela do canto da tela do seu computador, interrompe sua rotina – que não é a de depenar galinhas para o almoço – e grita por sobre a divisória da sua baia de trabalho:
- A vaca inglesa enlouqueceu!
A neta da Viúva Racketenbauer, sentada do outro lado da divisória, apesar de pouco entender, devido ao problema hereditário de audição, apenas responde:
- Não, sim! É aquela coisa, sabe como é... – Comentário que serve para qualquer interpretação.
Os muros continuam aí. Mudaram de nome, porém ainda servem de suporte às redes de notícias. Hoje, nos modernos escritórios, há as ChiqueirinhoNews.
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