18.3.08

Telequaresma



Bacalhau - Wikipedia


Telequaresma

Por Paulo Heuser


Mateus foi educado em Chattanooga, Tennessee, capital mundial da gagueira. Uma conseqüência óbvia da educação naquele país foi o empreendedorismo que tomou conta dele. A volta ao País foi triunfal, de canudo na mão, com MBA, MSC, PHD, MHO, CIF, AVC, FXU e VUE. Mateus desprezou ofertas de emprego dos mais respeitados conglomerados econômicos daqui e de lá. O rapaz era um empreendedor nato.

Empreendimentos bem sucedidos requerem pesquisa de mercado, coisa que Mateus tinha bem em mente. Outra coisa que ele aprendeu lá em Chattanooga, durante seu AVC em Marketing, foi que o maior inimigo de um empreendimento pode ser a cultura de povo. Muitos empreendedores fracassaram ao desprezar a tradição local. Os estudantes passam anos comendo Garbagys – salgadinhos de litotripsina transanodisada ß -, lá em Chattanooga, e depois tentam vendê-los aqui. O pessoal daqui prefere torresminho, amendoim ou caju. Um colega nipônico lançou sashimi de peru, marca Tencsguiven, no Japão, fracassando igualmente.

Mark Hethero foi o orientador do FXU do Mateus, que defendeu a dissertação A destruição sistêmica das tradições culturais enraigadas como ferramenta mercadológica alavancadora para a estruturação de nichos estratificados dos mercados globalizados nas comunidades neoceltas autônomas. Mateus provou que seria possível fazer com que os escoceses trocassem seus tradicionais kilts – saiotes xadrez – por calças em padrões florais, desde que convencidos de que seus testículos emanavam o gás CO2, causador do efeito estufa. Calças florais fariam a absorção imediata do gás.

Mateus já havia percebido, na prática, o que aprendera na teoria. Para destruir uma cultura era necessário começar por baixo, ou seja, pelas crianças. Elas ainda não internalizaram alguns comportamentos culturais, mantendo-se mais volúveis. Dessa forma um egresso de Chattanooga conseguiu tornar simples hambúrgueres no sonho de consumo de todas as crianças, bastando acrescentar brinquedos e embalagens diferenciadas. À medida que cresciam, as crianças transformaram-se em jovens, e estes em adultos que passaram a levar seus filhos para o templo dos hambúrgueres com embalagens diferenciadas. Estabeleceu-se o círculo vicioso.

A cultura local já estava toda desvirtuada. O marketing já havia transformado o Carnaval em festa de peão boiadeiro. O Natal virou um festival de vendas. O Greenpeace protestou contra a venda de ovos de chocolate da Páscoa, talvez temeroso de que os coelhos entrassem em extinção. Nenhum evento escapou da ação dos novos vendilhões do templo. Até a Sexta-Feira Santa, ou da Paixão, foi desvirtuada, mesmo não sendo uma efeméride festiva, muito antes pelo contrário. O dia de jejum e da abstinência transformou-se em data para refestelarem-se em orgias gastronômicas. Mateus percebeu a oportunidade apresentada pela mudança de hábito quando tentou comprar bacalhau na semana da Páscoa. Uma multidão impressionante invadia o mercado, engalfinhando-se em luta corpórea atrás dos peixes para qualquer gosto ou desgosto. Uma senhora que exigia peixe fresco, ao lado dos viveiros montados do lado de fora, acabou levando uma traíra viva, que se apressou em devorar a sacola, debatendo-se pela rua.

Mateus criou um novo produto, aproveitando a oportunidade: a Telequaresma. Ele vende kits para a Sexta-Feira, através de tele-entrega. Entrega caixas com conteúdos a escolha do freguês, inclusive o Abstinência Plus, contendo pão e água da bica. É o mais caro de todos.

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