Tlês tipos flitos
Tlês tipos flitos
Por Paulo Heuser
Vir à Capital significava viver emoções novas. Uma das mais marcantes foi a ida ao restaurante chinês, o Lokum, lá na Venâncio. Tudo era exótico naquele local. A decoração cheia de dragões e lanternas vermelhas impressionava à primeira vista. Os adultos consultavam o cardápio e comentavam sobre pratos inimagináveis, como a sopa de barbatana de tubarão. Camarões empanados, frango xadrez, tudo era diferente. A maçã laqueada e o ábaco com o qual calculavam a conta fecharam a noite de surpresas. Virei fã dos restaurantes chineses. O Pagoda exibia imensas filas de gente bacana que se dispunha a esperar por uma mesa nas noites de sábado.
Numa dessas filas intermináveis do Pagoda, notamos que abrira outro restaurante chinês, um pouco adiante. Um casal de recém-chegados, não sei de qual das Chinas, tocava a casa a dois. Ele fazia as vezes de proprietário, maitre, gerente, garçom, sommelier de coca-cola e cerveja, e manobrista de táxi. Ela se desdobrava como proprietária, chefe de cozinha e cozinheira. Alguém lhes montara um cardápio numerado, com algarismos arábicos, que deveria ter um equivalente chinês na cozinha. Minha entrada preferida era a de número um, como convinha a uma entrada. Era o tlês tipos flitos. O que era, não sei, mas era muito gostoso. A sopa trovão, de número dois, também era boa pedida. E assim seguia-se, apontando os números ao chinês, que os copiava em um pequeno pedaço de papel, que, desconfio, servia como argumento de sorteio para o bilhete da sorte. Um misto de comanda com jogo do bicho. Havia números para tudo, inclusive para a coca-cola, a cerveja e o único vinho que constava da extensa carta. A interface de comunicação cliente x garçom era precária, porém a comida era muito boa. Por pirraça, fazíamos perguntas estapafúrdias ao chinês, que respondia algo ininteligível enquanto sorria. Deveria dizer algo como “ocidental estúpido”, se traduzido para português. Todo mundo parecia divertir-se naquele restaurante, dos donos aos clientes. De alguma forma, eles conseguiam cobrar as contas. Um dia, sumiram, como sumiu o Lokum.
Os restaurantes chineses foram atropelados pela praga tupiniquim dos bufês. Seus pratos foram feitos para consumo imediato, da wok para a mesa. Como servir um chapéu chinês numa cuba de bufê? Só mesmo se for o chapéu para colocar na cabeça. As cozinhas chinesa e italiana têm algo em comum, por incrível que pareça. Não há como servir massa em bufê, mantendo-se a qualidade. As massas devem ser servidas diretamente no prato, já acompanhadas do molho. Porém, tanto os chineses locais, como os italianos locais, renderam-se aos bufês e rodízios. A levíssima e delicada cozinha chinesa adaptou-se aos artifícios que a mantêm nas cubas. Hoje, contam-se nos dedos os restaurantes que se dispõem a preparar um prato na hora.
Houve época em que resolvi eu mesmo preparar meus pratos orientais. Saí para comprar broto de bambu, num sábado pela manhã. Encontrar a loja de produtos orientais não foi tão difícil. Difícil mesmo foi sair na rua com o broto de bambu. Eu imaginava algo semelhante à taquara. Contudo, o balconista abriu uma câmara frigorífica e retirou um saco plástico cheio d’água com uma estranha substância disforme e esbranquiçada ao centro. A coisa toda, incluindo a água, deveria pesar uns cinco quilos. Lá saí eu, pelo Bonfa, carregando aquele cérebro hidratado de ET. Várias pessoas me pararam para perguntar o que era aquilo. Seria um feto de baleia? Ou um fígado de marciano?
Lá em outubro, estaremos novamente defronte ao cardápio cheio de números, sem saber exatamente o que são aqueles pratos de nomes exóticos, como “esquerda laqueada” e “direita empanada”. Exóticos sabores que só provaremos quando servidos no bufê da democracia.
Marcadores: comida chinesa, lokum, wok
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