O caderno
O caderno
Por Paulo Heuser
Em outros tempos, havia um costume seguido pelas colegiais, que hoje foi ressuscitado pelos colunistas sociais. Elas mantinham cadernos, como diários, que entregavam para os colegas, a fim de que preenchessem um questionário, sabe-se lá bem para quê. Para fazerem chantagem, possivelmente, já que os call centers ainda não haviam sido inventados. Pelo que me recordo, as meninas desenhavam borboletas e coisas do gênero, enquanto os rapazes tentavam enaltecer seus feitos gloriosos. As perguntas eram as mesmas de hoje, como sobre o cantor preferido, o último livro que leu, o grande amor da semana, etc.
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Eu recebi apenas um caderno desses, de uma colega da classe. Foi a primeira e a última vez. Até hoje não entendo bem o que deu tão errado. Lembro-me até hoje daquele dia de inverno. Eu voltava para a sala de aula, após o intervalo das dez, quando ela se aproximou de mim e alcançou aquele caderno exalando um perfume de reunião dançante de sábado. Nada falou, apenas sorriu, deixando-me parado com cara de bobo e joelhos frouxos. Será que eu fizera algo para merecê-lo?
Levei o tesouro para casa, cuidando para não produzir orelhas-de-burro nele, coisa imperdoável para se fazer num caderno feminino. Eu realmente caprichei quando preenchi aquele caderno, ainda mais porque sabia que ele passaria por outras mãos, e outros olhos. Li o que os outros haviam escrito até então, pois não queria parecer um pé-esquerdo dentre todos pés-direitos. Julguei ter percebido como a coisa funcionava. Todas as meninas eram loucas pelo Alain Delon, já que o Brad Pitt recém estava sendo alfabetizado. Entre a ala masculina, não havia unanimidade. Alguns sonhavam com uma já balzaquiana Brigitte Bardot. Eu particularmente me dividia nos sonhos entre Jacqueline Bisset e Jane Fonda, que aparecera fantástica no lisérgico Barbarella. Optei pela última, sabendo que não erraria.
Qual é sua música preferida? A maioria colocou Good Morning Starshine, da peça Hair. Então, resolvi ousar e coloquei a orgásmica copulante Je t’aime moi non plus, da Jane Birkin, rezando para que nenhuma mãe lesse o caderno ou ouvisse a música que suas filhas ouviam. Se você não sabe que música é essa, pergunte aos seus pais, eles sabem.
Na seção cinematográfica, Franco Zeffirelli papou todas as indicações femininas, com seu Romeu e Julieta. Vi uma excursão de freiras ir aos prantos, enquanto assistiam ao filme numa sessão vespertina, naturalmente. Fui de 2001: Uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick. O interessante sobre esse filme é que ninguém conseguiu entendê-lo, nem o próprio autor. Assim, podia-se dizer qualquer coisa sobre ele, pois não havia como contestar.
Cheguei à parte sobre gostos literários. Qual era o meu autor preferido? Saint Exupèry e Richard Bach eram unanimidade entre a ala feminina. Seus Pequeno Príncipe e Fernão, Capelo e Gaivota estavam na cabeceira de todas. Fiquei tentado a escrever Isaac Asimov, Arthur C. Clarke ou Brian Aldiss. Porém, resolvi ousar, novamente. Balancei entre Isaac Newton (1643-1727), considerado pai da Mecânica Clássica e do Cálculo Diferencial, e Max Planck (1858-1947), considerado o pai da Mecânica Quântica. Acabei escolhendo Planck, pois Albert Einstein debruçou-se sobre os estudos dele para explicar o efeito fotoelétrico. Minha escolha não poderia ter sido diferente, pois definiu meu livro preferido. Em 1905, chamado annus mirabilis – ano milagroso - da física, Einstein publicou um artigo com o singelo título Über einen die Erzeugung und Umwandlung des Lichtes betreffenden heuristischen Standpunkt - Sobre um ponto de vista heurístico concernente à geração e transformação da luz. O título traduzido não melhora muito, não é?
Eu não entendi por que as meninas não me entregavam mais seus cadernos, após eu haver preenchido aquele com tanto capricho. Talvez tenha algo a ver com a escolha do livro. Sei lá. Eu escolhi cuidadosamente cada resposta, inclusive aquela sobre o meu número preferido. Ora, não poderia ser outro senão a Constante de Planck: 6,626068 × 10-34 m2 kg / s.
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