384 - Refrações da vida real
Refrações da vida real
Por Paulo Heuser
Travo uma antiga relação de ódio com os meus óculos. A relação de amor seria difícil, pois não há o que amar nos óculos. Eles sujam, geralmente quando não temos com que limpá-los, a não ser aqueles guardanapos de restaurante que, se não arranharem as lentes, as sujam mais, espalhando a mancha. Caminhar na chuva usando óculos é como dirigir um carro na chuva sem limpador de pára-brisa. Óculos embaçam, como os pára-brisas, só que aqueles não vêm com ar-condicionado para desembaçá-los.
Por Paulo Heuser
Travo uma antiga relação de ódio com os meus óculos. A relação de amor seria difícil, pois não há o que amar nos óculos. Eles sujam, geralmente quando não temos com que limpá-los, a não ser aqueles guardanapos de restaurante que, se não arranharem as lentes, as sujam mais, espalhando a mancha. Caminhar na chuva usando óculos é como dirigir um carro na chuva sem limpador de pára-brisa. Óculos embaçam, como os pára-brisas, só que aqueles não vêm com ar-condicionado para desembaçá-los.
Se eu detestava os óculos quando jovem, agora os abomino. A idade trouxe as lentes multifocais, que prefiro chamar de multifecais. Elas permitem visão para perto e para longe, desde que sua cabeça assuma posições realmente peculiares. Não há como ler um livro, na cama, usando óculos com lentes multifecais. O umbigo fica perfeitamente nítido. Mas, como não leio com o umbigo, sou obrigado a usar óculos com lentes para perto – aqueles vendidos pelos camelôs. A grande vantagem dos óculos vendidos na praça é o preço. Por déirreal, esperar o quê? O problema é que os vendedores estão sumindo, pela ação da fiscalização. Levei mais de hora para comprar os últimos. Tive de me intestinar naquela massa de barracas da Marechal, perguntando a todos sobre algum vendedor de óculos. Desconversavam apenas, enquanto tentavam me vender jogos para Playstation, software alforriado – software preso que recebeu uma certidão virtual de alforria – e outras tantas mercadorias protolegítimas. Sei, é errado comprar óculos de camelô, porém dispensa uma série de procedimentos burocráticos com oftalmologistas e despesas com óticas. Imagine só se as escovas dentais fossem vendidas apenas mediante prescrição odontológica. No dia seguinte haveria outro produto à venda, lá na praça.
Meus óculos possivelmente adivinharam meus pensamentos. No sábado passado, fui colocá-los sobre a mesa de cabeceira e plec! Uma das hastes da armação se quebrou. A grande surpresa veio da óptica. O vendedor forneceu-me o endereço de uma casa especializada no conserto de armações - viva! Porém, julguei prudente ir ao oftalmologista, para fazer uma revisão. Olhos e carros têm algo em comum. As revisões sempre dão prejuízo. Marquei consulta com o Dr. X, recomendado por um amigo. Eu já havia consultado com ele, no passado. Quando comentei com esse amigo, que havia marcado consulta com o Dr. X, ele perguntou-me sobre eu haver enlouquecido, pois o Dr. X estaria errando todas as prescrições de lentes. Então, fiz o que julguei mais prudente. Encontrei um Dr. Y, também conveniado com meu plano de saúde, e marquei consulta com os dois, para o mesmo dia, com uma hora de diferença, no mesmo prédio. Uma espécie de junta médica monodisciplinar involuntária. Na quarta-feira, lá estava eu na sala de espera do Dr. X, lendo Caras. Essa revista foi feita sob medida para as salas de espera dos oftalmologistas, pois lá dentro não há o que ler. Há fotos por todos os lados, mas nada de texto.
Não cheguei a folhear duas Caras, e o Dr. X já me atendeu. Enfiou meus olhos na máquina 1, na máquina 2, conferiu com lentes o que as máquinas receitaram, pingou gotinhas nos olhos e enfiou algo luminoso neles. Pronto. Dirigi-me ao outro andar, para a consulta com o Dr. Y. Nova secretária sorridente, as mesmas Caras, e um oftalmologista que não sorria. Foi o primeiro que vi, até hoje, que não sorri. Máquinas iguais. Quando ele foi pingar aquela coisa nos meus olhos, levei medo e confessei ser ele o segundo a pingar gotas nos meus olhos na última hora. Fazia parte da minha equipe oftalmológica involuntária. O Dr. Y não aparentou se importar com o fato. Saí do prédio com duas receitas de óculos para perto e duas receitas de óculos com lentes multifecais. Receitas iguais, por sinal. Fiquei aliviado.
Liguei para o amigo e lhe disse que eu havia obtido uma segunda opinião que coincidira com a do Dr. X. Ele disse:
- Quem é o segundo médico?
- É o Dr. Y, recomendado por alguns colegas...
- Ficou louco? O Dr. Y quase cegou minha tia cega!
Procuro o Dr. Z, aquele que ninguém conhece, nem recomenda.
Marcadores: camelô, óculos, oftalmologista, prescrição, refração
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