13.4.08

384 - Refrações da vida real

Madonna des Kanonikus Georg van der Paele de Jan van Eyck


Refrações da vida real

Por Paulo Heuser


Travo uma antiga relação de ódio com os meus óculos. A relação de amor seria difícil, pois não há o que amar nos óculos. Eles sujam, geralmente quando não temos com que limpá-los, a não ser aqueles guardanapos de restaurante que, se não arranharem as lentes, as sujam mais, espalhando a mancha. Caminhar na chuva usando óculos é como dirigir um carro na chuva sem limpador de pára-brisa. Óculos embaçam, como os pára-brisas, só que aqueles não vêm com ar-condicionado para desembaçá-los.

Se eu detestava os óculos quando jovem, agora os abomino. A idade trouxe as lentes multifocais, que prefiro chamar de multifecais. Elas permitem visão para perto e para longe, desde que sua cabeça assuma posições realmente peculiares. Não há como ler um livro, na cama, usando óculos com lentes multifecais. O umbigo fica perfeitamente nítido. Mas, como não leio com o umbigo, sou obrigado a usar óculos com lentes para perto – aqueles vendidos pelos camelôs. A grande vantagem dos óculos vendidos na praça é o preço. Por déirreal, esperar o quê? O problema é que os vendedores estão sumindo, pela ação da fiscalização. Levei mais de hora para comprar os últimos. Tive de me intestinar naquela massa de barracas da Marechal, perguntando a todos sobre algum vendedor de óculos. Desconversavam apenas, enquanto tentavam me vender jogos para Playstation, software alforriado – software preso que recebeu uma certidão virtual de alforria – e outras tantas mercadorias protolegítimas. Sei, é errado comprar óculos de camelô, porém dispensa uma série de procedimentos burocráticos com oftalmologistas e despesas com óticas. Imagine só se as escovas dentais fossem vendidas apenas mediante prescrição odontológica. No dia seguinte haveria outro produto à venda, lá na praça.

Meus óculos possivelmente adivinharam meus pensamentos. No sábado passado, fui colocá-los sobre a mesa de cabeceira e plec! Uma das hastes da armação se quebrou. A grande surpresa veio da óptica. O vendedor forneceu-me o endereço de uma casa especializada no conserto de armações - viva! Porém, julguei prudente ir ao oftalmologista, para fazer uma revisão. Olhos e carros têm algo em comum. As revisões sempre dão prejuízo. Marquei consulta com o Dr. X, recomendado por um amigo. Eu já havia consultado com ele, no passado. Quando comentei com esse amigo, que havia marcado consulta com o Dr. X, ele perguntou-me sobre eu haver enlouquecido, pois o Dr. X estaria errando todas as prescrições de lentes. Então, fiz o que julguei mais prudente. Encontrei um Dr. Y, também conveniado com meu plano de saúde, e marquei consulta com os dois, para o mesmo dia, com uma hora de diferença, no mesmo prédio. Uma espécie de junta médica monodisciplinar involuntária. Na quarta-feira, lá estava eu na sala de espera do Dr. X, lendo Caras. Essa revista foi feita sob medida para as salas de espera dos oftalmologistas, pois lá dentro não há o que ler. Há fotos por todos os lados, mas nada de texto.

Não cheguei a folhear duas Caras, e o Dr. X já me atendeu. Enfiou meus olhos na máquina 1, na máquina 2, conferiu com lentes o que as máquinas receitaram, pingou gotinhas nos olhos e enfiou algo luminoso neles. Pronto. Dirigi-me ao outro andar, para a consulta com o Dr. Y. Nova secretária sorridente, as mesmas Caras, e um oftalmologista que não sorria. Foi o primeiro que vi, até hoje, que não sorri. Máquinas iguais. Quando ele foi pingar aquela coisa nos meus olhos, levei medo e confessei ser ele o segundo a pingar gotas nos meus olhos na última hora. Fazia parte da minha equipe oftalmológica involuntária. O Dr. Y não aparentou se importar com o fato. Saí do prédio com duas receitas de óculos para perto e duas receitas de óculos com lentes multifecais. Receitas iguais, por sinal. Fiquei aliviado.

Liguei para o amigo e lhe disse que eu havia obtido uma segunda opinião que coincidira com a do Dr. X. Ele disse:

- Quem é o segundo médico?

- É o Dr. Y, recomendado por alguns colegas...

- Ficou louco? O Dr. Y quase cegou minha tia cega!

Procuro o Dr. Z, aquele que ninguém conhece, nem recomenda.

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