10.4.08

A arca sem fronteiras


Edward Hicks
A arca sem fronteiras

Por Paulo Heuser


Pois o Noé andava cuidando da vidinha dele. Consertava uma cadeira aqui, uma mesa ali, até que lhe encomendaram o projeto da tal da arca. Perdeu-se em meio a esquemas, desenhos e cálculos. A mulher do Noé acreditava que ele enlouquecera, pois abandonara a carpintaria para se dedicar àquele projeto maluco. Não só ela, pois os clientes e vizinhos da Carpintaria Aricanduva passaram a caçoar dele. Porém, Noé não esmoreceu. Empenhou os últimos trocados e utilizou todo o estoque de madeira para iniciar a construção da nave.

Foi um longo e penoso trabalho. Mal iniciara o projeto, quando chegaram os fiscais da prefeitura. O alvará de funcionamento da Aricanduva era para uma carpintaria, e Noé desviara da atividade, constituindo um estaleiro. Mesa era mesa, navio era navio. Após oito meses, Noé conseguiu um novo alvará, graças à intervenção da ONG Burocratas Sem Fronteiras. Noé deixara de freqüentar o boteco do Jacó, pois o pessoal não parava de implicar com sua devoção ao projeto maluco. Então foi a vez do conselho de engenharia embargar a obra do Noé. Faltava-lhe responsável técnico, e a inspiração divina não contava pontos. Novamente a ONG Burocratas Sem Fronteiras entrou em cena. Conseguiram que um engenheiro naval mineiro assinasse o projeto.

Após doze anos de árduo trabalho, Noé desconfiou que a obra não avançava. Jurava já haver pregado a mesma tábua inúmeras vezes, sensação semelhante àquela sentida pelos leitores dos livros de cabeceira de auto-ajuda. Lê-se sempre a mesma página, e se cai no sono. Noé convenceu sua mulher a ficar de vigília, durante a noite, enquanto ele dormia. Ela logo descobriu por que a arca não crescia, ao contrário da favela lindeira, onde diariamente surgiam novos barracos de madeira. Acionada novamente, a ONG Burocratas Sem Fronteiras conseguiu alguns mercenários emprestados pela ONG Mercenários Sem Fronteiras. O pagamento pelos serviços dar-se-ia em troca do uso eventual da arca para o transporte de tropas.

Quando Noé já acreditava que veria sua nau singrando o Aricanduva, na direção do Tietê, apareceram os ecologistas. Eles descobriram que Noé pretendia encher a arca com casais das mais variadas espécies de animais silvestres. Nem a ONG Ecologistas Sem Fronteiras conseguiu retirar a interdição. A solução encontrada foi substituir os animais silvestres pelos exóticos. Noé embarcaria casais de elefantes, dromedários, javalis e formigas neozelandesas, além dele próprio e da sua família. Nada de tatus e taturanas. A ONG Diversidade Sem Fronteiras conseguiu liminar para incluir um casal exobiológico (ET) na relação.

Quarenta anos após o início da construção da arca do Noé, vencidas todas as barreiras burocráticas, ele embarcou os casais e sua própria família, cerrando as portas. Passaram seis dias lá dentro, em seco, ouvindo as piadas dos que passavam pela rua. No sétimo dia choveu. Choveu em 40 dias e 40 noites o que seria esperado em 40 meses. No quarto minuto de chuva o Aricanduva transbordou e invadiu o terreno da carpintaria. As garrafas PET trazidas pela chuva batiam no casco da arca. Aos seis minutos de chuva o Tietê transbordou, bem como o Pinheiros.

A arca do Noé singrou pelo oceano sem fim formado pela chuvarada. No quadragésimo primeiro dia a chuva parou e alguém abriu o ralo que começou a drenar lentamente todo aquele aguaceiro. Sabe-se lá de onde, surgiu uma pomba que trazia um ramo no bico, indicando que o dilúvio chegava ao fim. Certo dia, quando as águas se foram, a arca do Noé encalhou sobre um morro, onde antes ficava a Vila Ararat, no complexo da Favela da Turquia.

Quando Noé abriu a porta da arca, deu de cara com um comitê de boas vindas. Sobre um palco cheio de gente engravatada, um sujeito de capacete berrava ao microfone, ladeado pela mulher de olhar severo, também de capacete:

- Nunca antes neste País alguém fez chover tanto!

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