23.9.08

466 - A classe média XIII - Pão com banha

Pão com banha. Fonte: Wikipedia
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A classe média XIII – Pão com banha

Por Paulo Heuser


A primavera chegou ao desconhecido Município do Lado de Cá do Cinamomo. O crescido terneiro mugia, talvez de abobalhação, talvez de assombração. O telefone de baquelita do Bar, Churrascaria e Borracharia 12 Irmãos tocou, e acordou o Sétimo, que dormia em pé atrás do balcão. Ele atendeu e conseguiu entender, em meio aos chiados, que o Estranho estaria chegando ao Lado de Cá do Cinamomo, último reduto da classe média não-estatística. O Governo estaria tentando falar com o Prefeito há dois dias, mas foram impedidos pelos problemas de comunicação provocados pelos galhos do cinamomo batendo nos fios.

O jipe do MIMA – Ministério da Margarina – chiou os freios em frente ao 12 Irmãos, antes de o Sétimo dizer o até logo que soou meio carioca, pelo chiado dominante na linha. O estranho veio acompanhado pelo agente especial sanitário Patterson e pela agente sanitária sênior Halley-Bop. Os agentes vestiam roupas especiais que exibiam o símbolo universal que indica perigo biológico. O Sétimo acionou a alavanca do SMA – Sistema Municipal de Alarme –, que puxou a corda amarrada ao badalo do sino da igreja. Padre Antão dormia no confessionário, enquanto ouvia a confissão do dia da Dona Clotilde. Ela confessava dirigir sem uso do cinto de segurança, pois o Dauphine 1962 não estava equipado com esse item de segurança. Tampouco com qualquer outro. Padre Antão lhe prescreveu a reza de sempre e correu para o 12 Irmãos.

O padre chegou a tempo de ver os agentes Patterson e Halley-Bop medirem alguma coisa com instrumentos que emitiam bipes cadenciados. Ela apontava o instrumento para o balcão atrás do qual o Sétimo acordou e gritou:

- Resultado positivo, às doze horas!

- Mas, são recém 10h35... – observou o Sétimo.

O agente Patterson também apontava seu medidor para o balcão, no momento em que Linoberto entrou no 12 Irmãos, alertado pelo badalar do sino.

Linoberto cumprimentou rapidamente o Estranho e perguntou:

- O que lhe traz desta vez? Uma nova lei besta?

- Não, Linoberto. O MIMA recebeu uma denúncia de uso de manteiga. Esta foi banida das prateleiras dos mercados do lado de lá do cinamomo por ter sido considerada insalubre pelos fabricantes de margarina e derivados.

- Insalubre para os negócios deles, bem entendido. – disse Linoberto.

- Não é apenas uma questão comercial, há também o problema do biodiesel e do pré-sal! – afirmou o Estranho.

- Alguém come biodiesel? – perguntou o Sétimo.

- Não diretamente, mas para fabricarem manteiga reduzem a área plantada de soja e prejudicam a produção estratégica do biodiesel. Menos vacas, mais óleo, é o lema.

O crescido terneiro mugiu, talvez de compreensão, talvez de constipação.

- E o pré-sal, o que tem a ver com isso?

- Ora, é óbvio, sabe como é, a relação entre o pré-sal e a margarina de biodiesel está intrinsecamente ligada à questão da exploração futura do óleo extraído da camada pré-sal que financiará a exploração do biodiesel como... como... como aquilo.

Todos permaneceram em silêncio durante alguns instantes.

- Fabricarão margarina com sal? – perguntou o Sétimo.

- Com sal, sem sal, aditivada ou não, fabricaremos qualquer tipo de margarina. O MIMA está encarregado da eliminação da manteiga. Poremos fim às gorduras saturadas!

A agente Halley-Bop apontou seu instrumento investigador na direção do copo da “boa” que o Sétimo serviu.

- Nós não temos margarina no Lado de Cá do Cinamomo. Só usamos manteiga. – disse o Sétimo.
A agente Halley-Bop sentiu uma súbita náusea, e saiu em disparada na direção da janela dos fundos do 12 Irmãos, bem ao lado do chiqueiro. Se ainda estava em dúvida quanto a não-digestão do café da manhã, esta se dissipou de pronto.

- Mas, nós gostamos da manteiga! A tal de margarina não tem gosto, ou melhor, tem gosto de margarina! – disse o Sétimo.

- A margarina é o produto preferido da população mundial, desde sua invenção pelo químico francês Hippolyte Mège-Mouriés, a pedido de Napoleão III! - O Estranho estava ficado entusiasmado com o próprio conhecimento do assunto.

- Ela foi fabricada a partir de gordura animal porque a manteiga era muito cara! – protestou Linoberto – E mais, somente muito depois é que fizeram a margarina com óleos vegetais, inclusive com essas gorduras trans tão combatidas.

- Só falta vocês também quererem comer banha! - disse o Estranho.

A agente sênior Halley-Bop não resistiu e correu novamente para a janela.

- Não há nada melhor do que pão com banha fresca! – o Sétimo abriu um largo sorriso.

A agente sênior Halley-Bop não resistiu e permaneceu junto à janela. Ela não conseguia imaginar que tipo de pessoa comeria manteiga e banha de porco, e a náusea se fez presente.

- Seja como for, vocês terão de abdicar da produção dessas gorduras polissaturadas. Elas são insalubres e antipatrióticas, pois vão de encontro às políticas do biodiesel e do pré-sal.

Maria estava cozinhando marmelada, quando Linoberto chegou em casa.

- E então, Lino, como foi a encrenca?

- O pessoal do lado de lá do cinamomo só inventa bobagens. Agora resolveram que temos de plantar soja e comer a tal de margarina, aquela pasta sem gosto que eles fabricam. Dizem que não podemos mais fabricar manteiga.

- Teremos de comer aquela pasta horrível? – Maria sentiu um calafrio.

- Tivemos de fazer um acordo.

- Qual?

- Bem, prometemos não fabricar mais manteiga.

- E o que comeremos sobre o pão, além da banha?

- Ora, bateremos a nata do leite até que ela fique dura.

- Isso não é manteiga?

- Não, Maria, - Linoberto deu uma piscadela – é nata muito batida.

- Lino, o padre me disse que a tal da agente vomitava o tempo todo.

- É, Maria, creio que serão gêmeos.

O crescido terneiro mugiu, talvez de gestação, talvez de marcação.


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3.3.08

27 anos


Esta é a tricentésima sexagésima quinta postagem.


Foto: Paulo Heuser
27 anos

Por Paulo Heuser


Estou francamente desolado. A globalização atropelou-me novamente. O pão daquela loja do supermercado foi padronizado com os demais da rede. Virou pão comum, como borracha. O que me atraía àquela loja era o pão, uma baguete quase francesa. Aparência e embalagem permaneceram as mesmas. A casca crocante, no entanto, foi-se com a venda da loja. Caiu o último bastião daqueles que sonhavam com um pão decente. Inscreveram o padeiro num curso de técnicas para fabricar pães sem graça. Pães para consumo com geléias industrializadas e margarinas fabricadas a partir de biocombustíveis. Da refinaria à mesa. Logo lançarão o pão de mamona, subproduto da moderna tecnologia para substituição dos comestíveis pelos combustíveis. Tornaremos-nos fósseis, afinal.

Outra coisa que me incomodou foi o pagamento de contas nas caixas do supermercado. A escolha do caixa, antes pautada pela quantidade de coisas que os da frente levavam no carrinho, transformou-se em algo semelhante à escolha das filas nos bancos. Somente a primeira vista, diga-se de passagem. Nos bancos devemos evitar as filas onde há jovens vestindo bermudas e com capacetes na mão. São potenciais office boys portadores de pastas recheadas com contas de difícil pagamento, que demandam inúmeros cálculos e consultas. Já nos supermercados, os potenciais perigos são outros. Cuidado com as senhoras idosas que carregam apenas um litro de leite e um pacote de bobs, no cesto de compras. Alguns dirão que não se vendem mais bobs no supermercado. Outros irão além, dizendo que nem sequer sabem o que são bobs. Ora, bobs são rolos de cabelo, dispositivos do tempo em que as mulheres e alguns homens - de extrema vanguarda - gostavam de ondular os cabelos. Depois alguém juntou dois ferros de passar e colocou uma dobradiça na base deles, inventando a tal de chapinha para alisar cabelos por incineramento.

Por trás daquela aparentemente inofensiva combinação de apenas dois itens pode haver uma bolsa com todas as contas do mês. Contas que serão pagas lá, na sua frente. A funcionária empacará a cada nova conta, chamando recursivamente um supervisor que consultará o gerente, que consultará o escritório central, etc. E você ficara lá parado, enquanto todos os demais clientes passam pelos outros caixas. Pagas as contas, finalmente, você será atendido. Não, faltou registrar os bobs. Ao passá-los frente ao leitor do código de barras, este entenderá que aquelas inúmeras linhas que se repetem cilindricamente são códigos de barra. Os mesmos códigos da maçã importada do Zimbábue. O impressor do caixa passará a cuspir rolos de papel com registro de maçãs, muitas maçãs. Ao chegar nos R$ 192,13 de maçãs, a caixa concluirá, após bocejar, que algo está vagamente errado, pois ela não pesou nenhuma maçã. Então consultará o supervisor que consultará o gerente, que consultará o escritório central, etc. O escritório mandará reiniciar o terminal do caixa que, mesmo assim, continuará expelindo lançamentos de vendas de maçãs. A você restará procurar outro caixa. Se for esperto, procurará uma das maiores filas – são as únicas que andam.

No sábado passado observei que o supermercado aderiu à campanha pró-obediência à lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas para menores de idade. Iniciativa louvável! Já havia passado uma dúzia de coisas quando o terminal parou, logo após passar o pacote de cervejas. Recusava-se teimosamente a registrar outros itens. O funcionário do caixa teve um lampejo repentino. Lembrou-se da obrigatoriedade de confirmar a maioridade do cliente, toda vez que o item selecionado é alguma bebida alcoólica. Ele digitou algo e o terminal seguiu em frente, sem registrar mais maçãs. Ao ouvir a explicação do rapaz, eu comentei, em tom de brincadeira, que era fácil constatarem que tenho mais de 18 anos.

- Dezoito não! São 27. – respondeu-me o caixa.

- Por que 27?

- Sei lá, eles pedem para verificarmos se o cliente aparenta ter mais de 27 anos de idade.

Fiquei encasquetado com os 27. Haverá estado norte-americano onde a maioridade só se dá aos 27? Seria uma margem de 50% para compensação de falhas de julgamento? Ou uma estratégia de marketing calcada na felicidade de alguém de mais idade que é confundido com alguém menor de 18 anos? As moças adoram. Imagine o diálogo:

- Lamento, senhorita, mas tenho ordens de não vender bebidas alcoólicas para menores!

- Não é senhorita, é senhora!

- Desculpe-me, por favor. Eu nunca poderia imaginar que alguém casasse tão moça...

- Tampouco sou menor de idade!

- Ah, deixe disso, não me engana...

- Pois bem, veja minha identidade!

- Nossa, que coisa incrível, como a senhorita, digo, senhora consegue manter essa incrível jovialidade? Eu não lhe daria mais do que 17!

- Ora, também não exagere...
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- Não estou exagerando, senhora. Se a senhora levar 12 rolos de papel higiênico Maciez Terminal, na promoção, aí sim, poderei exagerar. Não lhe darei mais do que 15!

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