5.7.06

De Penicos e Relógios

De Penicos e Relógios

Fiquei olhando o chip GSM à minha frente. Estava morto, Kaputt, Schluss! Pena que não me avisaram da morte iminente da minha agenda ao solicitar o cancelamento do serviço de telefone móvel. Poderia ao menos salvá-la no telefone. É a vingança da operadora. Já que o infiel se converte à outra religião, fulmina seus escritos através de um raio mandado de longe. Alguma coisa me disse para copiá-la para o novo aparelho antes de solicitar o cancelamento. Acertou. Não resisti à tentação de desmontar o chip para espiar o que havia ali. Desmontar o quê? Papéis colados sobre papéis. Dobrando e usando as unhas consegui descolar aquelas partes condutoras e, finalmente, a nudez revelada. Olhar o quê? Um mísero circuito, impossível de ser visto em detalhes a olho nu, especialmente por quem já passou dos 40. Estes sofrem, além da visão deficiente, de uma grande frustração ao abrir as coisas modernas para investigar seu princípio de funcionamento. Não há nada para ser visto. Se há, não apresenta componentes discretos, identificáveis. Qual é a graça?
Começo a entender as crianças da geração pós-radinho-de-pilha. Não há o que desmontar. A vida nos apartamentos não ajuda. Impossível se manter aquele quarto de tralhas onde se guarda a alegria do Mensageiro da Caridade. Eletrodomésticos velhos, pedaços de canos, fios e coisas dos avós, não identificáveis. Se o Santo Graal existe, fisicamente, deve estar em um quarto ou garagem, misturado com as outras tralhas.
Apresente uma criança urbana a um penico - aquele vaso esmaltado utilizado como sanitário móvel -, indagando sobre a sua utilidade. Seria uma panela leiteira gigante? A caneca de chope do vovô? A maior parte das pessoas julga ser o telefone móvel celular a invenção mais importante do século 20. Pergunte para alguém que está “apertado”, longe de um banheiro, qual é a coisa mais útil do mundo.
Houve uma grande perda. As crianças ganharam a Internet, com suas virtudes e defeitos, perderam a capacidade de analisar os artefatos e os fenômenos. Há coisas que foram feitas para não serem desmontadas. Os gafanhotos se incluem nesta classe. Na infância, um amigo e eu decidimos descobrir como funcionava um gafanhoto. No passado, pois deixou de funcionar após a investigação. Dissecação in vivo. Do primeiro gafanhoto ninguém se esquece. Com certeza será também o último. O Criador deve ter colocado aquela nojeira ali dentro para afastar os humanos curiosos. Até há algo ali dentro, nada para ser visto, no entanto. Crianças, não tentem! Creia-me, aquela visão deixa doente, por dias a fio. Aqueles que almejam cursar Medicina devem deixar o gafanhoto por último. Caso contrário, poderão desistir da pretensão. Descobrimos naquele fatídico dia que basta um gafanhoto para se ter uma praga.
Hoje as crianças estão bem mais seguras. Não brincam mais de lança-chamas usando bombas de flit (Cazuza conhecia) e não constroem armamentos medievais a partir de tralhas. Talvez explique a falta de interesse pelas engenharias, nos dias de hoje. É claro que o mercado para os engenheiros também encolheu. Importamos tudo onde há tecnologia avançada. Poucas fábricas produzem muito. A curiosidade matou o gato, e foi morta pela miniaturização e pela automação de projeto.
O filé mignon dos demolidores curiosos era o relógio. Mecânico, é claro. Dava um prazer enorme retirar peça por peça. A mola da corda saltava traiçoeiramente, cortando algum dedo. Sem dúvida, o 13º Trabalho de Hércules foi o de recolocar uma mola de relógio no lugar original. A expressão latina in statu quo ante – no estado que se encontrava antes – deixa de ter qualquer significado na relojoaria amadora doméstica. O mesmo acontece com o zíper das calças. Ele já nasceu engatado. Nenhum humano conseguirá colocá-lo de volta no trilho, ao se soltar. Do que vivem os mecânicos sem os carburadores?
Já reparou naquele estranho cinzeiro, em formato de cálice, na sala da casa da tia Hermenegilda? Será?
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Paulo Roberto Heuser

1 Comments:

At quarta-feira, 16 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

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